terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Teatro de Revista - Parte IV

Para se tornar a grande estrela da revista, durante mais de 20 anos, reinando em todos os palcos da praça Tiradentes, Aracy Cortes não se limitava aos próprios dotes vocais e físicos. Exigia, a princípio, de seus empresários e, depois como produtora, apuro em cada detalhe nos espetáculos. A foto mostra Aracy cercada por suas coristas e o cuidado com o guarda-roupa não só da vedete, mas também do corpo de baile.

 A malícia do samba no teatro de revista

Dizem todos: / Tem uma graça feiticeira, / Só porque aqui nasci / Nesta terra brasileira / Com meu cheiro de canela / Minha cor de sapoti, / Dizem todos: / Lá vem ela! / O demônio da Araci!

O samba Graça de Araci, de Ary Barroso, na revista Não adianta chorar, encenada em agosto de 1929, no Teatro Recreio do Rio de Janeiro, retratava musicalmente a mais polêmica, musical e importante vedete que o teatro de revista brasileiro teve em toda a sua história.

Zilda de Carvalho Espíndola começou a escalada para a fama no teatro de revista brasileiro, ao integrar o elenco de Sonho de Ópio, estreada em novembro de 1923, no Teatro São José. A figura de mulher bem brasileira, a morenice tentadora e petulante, somadas à boa voz, segura interpretação e presença dominante em cena, logo fizeram dela atriz disputada pelos empresários para as montagens de revistas subseqüentes.

Aliás, disputada foi a palavra que Aracy Cortes, nome artístico adotado por Zilda, mais ouviu em toda a sua vida. Disputava-se Aracy atriz, Aracy mulher e, principalmente, Aracy cantora. Em muito pouco tempo, a fama de intérprete afinada, maliciosa, de excelente estampa, agradando plenamente ao público, fazia com que todos os compositores a procurassem para ver suas músicas incluídas nas revistas por ela estreladas.

A princípio, Aracy era obrigada a cantar as músicas apontadas pelo repertório original dos espetáculos, mas sua força cresceu tanto que passou a impor composições e compositores de seu agrado. De tal forma que até mesmo algumas revistas acabavam por serem batizadas com nomes de suas músicas favoritas.

No início da carreira, houve, entre ela e o compositor Sinhô, como que uma troca de favores. Era ele quem tinha fama, enquanto ela era principiante. Mas depois de ter aprendido muito de interpretação com o maestro Paulino Sacramento, de ser dirigida e orientada por Luís Peixoto, Aracy começou a se ombrear com o compositor e, quando cantou dele, em 1929, o samba Jura, estava efetivamente consagrada. Todas as noites bisava e trisava, na revista Microlândia, de Marques Porto, Luís Peixoto e Alfredo de Carvalho, no Teatro Fênix, de início, e posteriormente no Palace-Théâtre. Interessava, então, a Sinhô que a força de Aracy fosse usada no lançamento de suas músicas

Mulher muito à frente de seu tempo, Aracy Cortes desde sempre desafiava preconceitos. Escorada na beleza física e na graça com que se apresentava nos palcos do teatro de revista, construiu carreira que lhe permitia todas as ousadias. Como a posar praticamente nua, "vestida" apenas com um violão, foto de 1924, resultando em um dos seus maiores sucessos, a canção "Gemer num violão", que ela interpretava de forma desabusada, sempre na certeza de ser chamada de volta ao palco, três ou quatro vezes por noite. Até encerrar em definitivo a carreira, no musical "Rosa de ouro", que a conduziu ao palco nos anos 60, manteve a pose e o charme de grande estrela.

Força que ficou patente em outro clássico absoluto da música popular brasileira, tido pelos pesquisadores como o primeiro samba-canção que se conhece. Linda flor, de Henrique Vogeler, fora lançado, com letra de Cândido Costa, em uma comédia musicada de Freire Júnior, chamada A verdade ao meio-dia, em agosto de 1928. Cantada por Dulce de Almeida, passou despercebida. Mais tarde, ao montar a revista Miss Brasil (no Teatro Recreio, em dezembro do mesmo ano), Luís Peixoto colocou nova letra, rebatizou-a como Iaiá, que acabou famosa como Ai, Ioiô, e entregou-a a Aracy. Sucesso imediato no palco e definitivo em disco, com prêmio ganho até na Alemanha.

A voz de Aracy Cortes tinha o “toque de Midas”. Nada mais natural, portanto, que fosse assediada por todos os grandes compositores. Desde o maestro Paulino Sacramento, seu mestre musical, de quem lançou o samba Ai, madame, logo na estréia, até o consagrado Ary Barroso, todos a cortejavam. E ela rainha que era, aceitava tranquilamente a corte. De Ary começou logo com Vou à Penha e Vamos deixar de intimidade (ambos, depois gravados por Mário Reis), lançados na revista Laranja da China, de Olegário Mariano, no Teatro Carlos Gomes, em 1929. Lançou no teatro e no disco (de Ary e Lamartine Babo), Gemer num violão e, só de Ary, o citado Graça de Aracy, além de Eu sou do amor, Orgia, Boneca de piche, Deixa disso, Na batucada da vida, entre os mais conhecidos.

Noel Rosa, que pouca gente sabe ter andado pelo teatro de revista, entregou muito samba de sua autoria à voz de Aracy. Em janeiro de 1931, na revista Deixa essa mulher falar, ela cantava do Poeta da Vila, Com que roupa?. Além deste, em outras revistas, Aracy voltou a interpretar Noel em primeira mão, com sambas depois consagrados em diversas gravações: Queixume, Gago apaixonado e Dona Aracy.

Muitos outros sambistas de respeito pediram a bênção à grande estrela. Wilson Batista contava que aos 16 anos, trabalhando como eletricista no Teatro Recreio, teve seu samba Na estrada da vida lançado por ela. Almirante viu seu clássico (em parceria com Candoca da Anunciação) Na Pavuna cantado por Aracy na revista Dá nela, no Teatro Recreio, em 1930. Com tanto sucesso que virou nome de outra revista, montada por Freire Júnior no Teatro Cassino Beira Mar. De Ismael Silva e Nilton Bastos, ela lançou Se você jurar e, de Lamartine Babo, o samba Lua cor de prata e o antológico Canção para inglês ver. Mário Lago entregou-lhe Beijei, e Custódio Mesquita fez para ela, em parceria com Paulo Orlando, O tempo passa. De Kid Pepe, Germano Augusto e Seda, Aracy imortalizou o samba Implorar.

Bastaria, enfim, a simples carreira de Aracy Cortes para justificar o teatro de revista como palco lançador de sucessos da música popular brasileira, em particular o samba. Mas, a revista ainda fez mais, durante algum tempo, antes de se tornar apenas um festival de plumas, pernas e piadas.

Em junho de 1941, por exemplo, estreava no Teatro João Caetano, sempre na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, a revista Brasil Pandeiro, de Freire Júnior e Luís Pereira, musicada pelo baiano Assis Valente. Luxuosa e feérica, a revista apresentava quadros empolgantes e apoteóticos, ideal para a sambista Horacina Correia, uma mulata transpirando ritmo, lançar o samba que dava título à revista: “O tio Sam está querendo / conhecer a nossa batucada. / Anda dizendo que o molho da baiana / melhorou seu prato. / Vai entrar no cuscuz, / acarajé e abará”.

No ano seguinte, Assis Valente volta à revista, musicando A vitória é nossa, de Geysa Bôscoli e Freire Júnior, e, em 1943, sempre tendo como pano de fundo a presença brasileira na Segunda Guerra Mundial, Assis e Freire se juntam de novo e encenam Rei Momo na Guerra, estrelado por Dercy Gonçalves. O ponto alto era a figura do compositor Geraldo Pereira e 150 passistas e ritmistas da Escola de Samba da Mangueira, que pela primeira vez evoluía em um palco de revista.

Em 1944, Walter Pinto encena, assinada por Geysa Bôscoli e Luís Peixoto, a revista Momo na fila, sempre no seu reduto, o Teatro Recreio. Novamente Dercy é a estrela, e o êxito alcançado no ano anterior leva a Mangueira de volta ao teatro de revista, desta vez uma mini-escola de samba completa, sempre dirigida por seu compositor Geraldo Pereira. Para encenar To aí nessa boca, de 1949, J. Maia aproveitou a composição Que samba bom, de Geraldo Pereira, e criou a revista.

Não foi, porém, apenas Aracy Cortes que lançou grandes sambas e sambistas no teatro de revista. Mas, intérpretes de outros sambas alcançaram também sucesso, paralelas a Aracy, ou mesmo depois de a estrela entrar em declínio. Em 1933, por exemplo, quando da montagem de É batata, de Luiz Iglesias e Freire Júnior, da qual a própria estrela era Aracy, estava no palco uma estrela-mirim, apelidada Shirley Temple brasileira, que se chamava Isa Rodrigues. O comediante Oscarito, oriundo dos circos e que já tinha projeção na revista, sua mulher Margot Louro e a atriz Eva Todor dividiam, com a revelação infantil, as preferências do público. Aracy Cortes cantava Mulher, samba do portelense João da Gente, e Isa Rodrigues, que se tornaria grande caricata, arrebatava o público, cantando com Oscarito, de Ary Barroso, No tabuleiro da baiana, que Carmen Miranda acabara de gravar.

O gênero – designado mais como batuque que samba -, uma apoteose de basilidade, a figura da “baiana” sempre agradando, às vezes a mulher branca fingindo-se de mulata, fora lançado nos palcos por outra sambista de bossa e talento, a bela Deo Maia. Esta sim, mulata autêntica, que por longos anos manteve seu sucesso no teatro de revista, sempre com uma multidão de fãs. Fora do teatro, Deo Maia jamais conseguiu o mesmo êxito.

Ainda por muito tempo, o teatro de revista lançaria sambas e sambistas. As modificações sociais e políticas pelas quais passariam o Brasil não deixariam, porém, de atingi-lo e, ao fim dos anos 50, as coisas já tomavam outros rumos.

No final do ciclo como lançador de sucessos, o teatro de revista tem seu magnífico canto de cisne. No Teatro Carlos Gomes, na revista Branco tu é meu, em janeiro de 1952, Linda Baptista lança, de Lupicínio Rodrigues, o samba Vingança.

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